28/01/2019 –
Por Jairo Saddi

Com o debate sobre privatizações fervendo neste início de governo Bolsonaro e o resgate das ideias do último governo Temer (agosto/2017) de privatizar 57 empresas públicas, a Casa da Moeda do Brasil (CMB), que produz moedas metálicas,
cédulas, passaportes, selos etc., se torna a candidata para liderar a iniciativa antiestatizante. Mais do que nos engajar na campanha do pró ou contra tão contundente dos nossos dias, é preciso entender um pouco mais a função emissora e alguns aspectos jurídicos e econômicos ligados à moeda.

Primeiro, moeda é algo sério e não é à toa que muitos a consideram como a mais genial das abstrações humanas. O argumento raso de que a moeda irá desaparecer em curtíssimo prazo é inteiramente enviesado. Ainda que alguns países nórdicos tenham de fato estimulado a ideia; no Brasil, o meio circulante físico responde por mais de 30% de todas as transações na economia e mais de 50% da população economicamente ativa recebe seu salário no banco apenas para sacá-lo e transformá-lo em numerário e aí sim pagar suas contas e adquirir bens e serviços, mesmo que outros meios estejam crescendo rapidamente. Portanto, é forçoso lembrar que, para a maior parte da população brasileira, a moeda é a última, senão a única forma de meio de pagamento e reserva de valor – funções clássicas da moeda – que está ao seu alcance. Ainda que o debate sobre digitalização e desmaterialização da moeda seja muito relevante a verdade é que considerar a morte da moeda é precoce e exagerado.

Impingir a ineficiência estatal exclusivamente à CMB não é apenas errado, é injusto. Por um lado, é verdade que o custo da produção de moedas e cédulas é alto, e possivelmente deve haver outras opções mais baratas no mercado internacional se é que a demanda brasileira possa ser atendida. Mas essa afirmação também é válida para qualquer outro serviço estatal ou mesmo para um bem produzido no privado: um automóvel aqui é mais caro que na maioria dos países onde é fabricado.

Sobre a CMB, é preciso reconhecer a qualidade do que se faz, os investimentos realizados exclusivamente para atender o meio circulante e a inexistência de contratos de longo prazo da CMB como fornecedora para o próprio Estado. E isso sem contar com todas as amarras conhecidas para uma estatal, desde o processo licitatório complexo até as inegáveis influências políticas, nem sempre em linha com os melhores interesses da empresa pública.

A moeda é um símbolo nacional e há uma distinção entre emissão de moeda e a produção de meio circulante

A moeda é um símbolo nacional e um dos elementos da soberania pátria. Apesar de o assunto cívico estar fora de moda, há uma distinção a se fazer entre emissão de moeda e a produção de meio circulante. É verdade que qualquer um pode produzir moeda, mas apenas sob precisa instrução e ordens do emissor. A Constituição garante o monopólio da União sobre a emissão de moeda no art. 22, VI que o delega ao Banco Central (mas lei posterior, nº 13.416/2017 retirou o monopólio da CMB na fabricação de cédulas e moedas, restou à CMB o monopólio no fornecimento de selos postais (Qincluso na Lei nº 5895/1973), selos fiscais federais (Lei nº 11.488/2007) e passaportes (Lei nº 13.043/2014).

Assim, garantir que a moeda não possa ser falsificada – no passado, o crime contra o moedeiro falso era punível com a pior forma de morte existente – o esquartejamento – (no Brasil, o próprio Código Penal o tipifica no seu art. 289: “Falsificar, fabricando-a ou alterando-a, moeda metálica ou papel-moeda de curso legal no país ou no estrangeiro: Pena – reclusão, de três a doze anos, e multa”).

Produzir moeda ou qualquer outro documento oficial exige segurança e um processo complexo de matrizes e cunhagem. A CMB exporta, mas exporta pouco e para países de baixa renda, e muitos a veem como uma gráfica de luxo do Estado. Uma das razões é exatamente o fato de que a maior parte dos países têm a sua própria casa da moeda – que, em geral, é pública – alguns têm até duas, como os Estados Unidos. E há algumas raras exceções, nas quais a produção é privada, mas sempre em território nacional.

É necessário manter a segurança dos produtos que a CMB faz, tanto porque envolve dados pessoais (por exemplo, nos passaportes) quanto inúmeros elementos artísticos e digitais que dão autenticidade às cédulas e selos, por exemplo. E este é um dos pontos salientado pelo recente livro editado pela própria CMB e coordenado por Tércio Marcus de Souza, “Casa da Moeda do Brasil: Segurança, inovação, tecnologia e arte”. A obra trata de tais elementos de segurança: fundos de segurança, de registros coincidentes anticopiativos ou multidirecionais, de guilhoches etc., e dos chamados efeitos de segurança (efeito hedopra, por exemplo) e mostra ainda que técnicas especiais de gravação de matrizes são únicas e permitem a impressão com segurança das cédulas sem perder o olhar sobre o futuro digital, inclusive de um mundo onde o blockchain reinará.

E ainda, como a maior parte das casas da moeda são mesmo estatais – e aqui não é diferente – o Estado percebe o que se conhece como “senhoriagem”, ou seja, a diferença entre o valor nominal da moeda – no caso da nota de R$ 10,00, por exemplo, e o custo para produzi-la, digamos R$ 0,10. É claro que é uma questão de contabilidade nacional, mas aqui o resultado vai ao BC (e depois ao Tesouro), enquanto em muitos outros países o resultado é da própria casa da moeda.

Concluindo, há, ao mesmo tempo, um oligopólio e um monopsônio. Um só comprador de um lado – o Banco Central – e um só fornecedor de outro, a CMB. Recente ação judicial debateu a licitação que foi promovida pelo Banco Central para a escolha de um novo fornecedor e o argumento que prevaleceu foi o de que a entrega às empresas qualificadas para participar da licitação – nacionais e estrangeiras – das especificações técnicas para a fabricação de cédulas poderia representar irreversíveis riscos à soberania nacional. O que se parece esquecer é que, tanto de um lado como de outro, o patrão é o Estado, e, consequentemente, a sociedade, cabendo a ele atentar não só aos custos mas também à segurança de suas transações, aquilo que for melhor.

Finalmente, na esteira de oferecer aos leitores alguma resenha bibliográfica sobre o tema, recomenda-se a dissertação de mestrado de Rodrigo da Silva Ferreira, da FGV Ebape em 2018: “Fábricas de dinheiro: Fatores determinantes para o controle estatal ou privado dos meios de produção de cédulas e moedas.”


Jairo Saddi, pós-doutor pela Universidade de Oxford, doutor em Direito Econômico (USP), e professor da Escola de Direito da FGV-Rio, escreve mensalmente neste espaço.

https://www.valor.com.br/imprimir/noticia/6088265/opiniao/6088265/casa-da-moeda-do-brasil

Att

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